No final do ano passado, a empresa de consultoria econômica Delta Economics e Finance divulgou o ranking das cem melhores cidades brasileiras para se viver, colocando Santos na primeira posição e destacando-a como a melhor cidade do Brasil. Mas para quem reside em Santos, embora reconheça suas qualidades, sabe que vivemos em uma cidade marcada por profundas contradições.
Ignorar deliberadamente a realidade da especulação imobiliária, dos problemas ambientais, da mobilidade urbana e dos serviços públicos em colapso, como o sistema de saúde, enquanto se tenta vender a ideia simplista de “melhor cidade”, equivale a negar a existência da desigualdade social e dos diversos problemas que a afetam. Além disso, essa abordagem mascara como esses problemas se distribuem no espaço urbano, perpetuando a invisibilidade das camadas mais vulneráveis da população.
Existe uma ou várias faces de Santos? A praia, os morros e a Zona Noroeste compartilham do mesmo status de desenvolvimento? E o que dizer da grande parcela da população que enfrenta diariamente a ausência de políticas efetivas de ordenamento territorial, mobilidade urbana e saneamento, como é o caso do Dique da Vila Gilda, considerada a maior favela sobre palafitas da América Latina? Nesse local, a infraestrutura é precária e os moradores vivem sujeitos às intempéries, como tempestades e oscilações das marés, frequentemente surpreendidos por inundações e a corrosão das fundações.
Dique da Vila Gilda — Em 2007, 6 mil famílias viviam no local (COHAB)
Diante disso, nos questionamos: melhor cidade para quem? A mídia se aproveita desse título para promover a cidade e atrair o interesse de grandes empresas, enquanto encobre as profundas desigualdades que estão particularmente ligadas ao processo de mercantilização urbana, especialmente à especulação imobiliária. Santos é marcada por disparidades, claramente visíveis na distribuição do espaço urbano. Há uma intensa dinâmica imobiliária que privilegia a valorização das regiões próximas à orla da praia.
Essa “elitização” dificulta o acesso dos mais pobres a essas áreas, inclusive no acesso ao lazer. Devido à crise do Sistema Único de Saúde (SUS), inseparável do processo de mercantilização da saúde, muitos residentes de Santos se veem obrigados a recorrer a planos de saúde privados, mas também encontram dificuldades nessa opção, uma vez que a lógica do mercado é vender mais, não necessariamente proporcionar a melhor qualidade.
O sistema de saúde brasileiro encontra-se refém de empresas que, por meio do financiamento de campanhas de prefeitos e vereadores, perpetuam um ciclo vicioso que mina a estrutura do SUS para promover a venda de planos de saúde.
O transporte coletivo metropolitano e municipal está nas mãos de empresas privadas que priorizam o lucro, resultando em um serviço de baixa qualidade e tarifas caríssimas para a população. Além disso, aqui os motoristas são obrigados a desempenhar simultaneamente as funções de condução e cobrança. Essa dupla responsabilidade impõe um aumento na intensidade do trabalho, que prejudica não só a qualidade do serviço, mas também a saúde e o bem-estar desses trabalhadores.
E as pessoas das demais cidades da Baixada Santista que contribuem para o desenvolvimento de Santos enfrentam uma situação ainda mais grave. O transporte metropolitano é caótico, prejudicando a mobilidade e dificultando o deslocamento diário dessas pessoas. Além disso, a implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) beneficia apenas uma parcela reduzida da população e também se insere na lógica de mercado que permeia os demais serviços públicos.
O crescimento do porto de Santos tem ocorrido sem preocupações com o risco ambiental e a preservação dos ecossistemas litorâneos e com os moradores e da região em geral. Isso fica evidente ao observarmos as recentes catástrofes ocorridas, como a explosão do tanque da Ultracargo no ano passado e o vazamento de gás tóxico na Localfrio em janeiro deste ano.
Vazamento de produto químico no porto
Os casos de pessoas que adoeceram devido à inalação do gás tóxico representam eventos significativos na história recente da nossa cidade, e nos mostram quão vulneráveis somos e como nosso modelo de crescimento e fiscalização está equivocado.
Essas situações nos convidam a refletir e desmistificar rótulos que têm apenas objetivos comerciais, sem um compromisso genuíno com a verdade, a realidade e a essência das coisas. É crucial reconhecer que existem diversos fatores a serem considerados para determinar se uma cidade como Santos é mesmo a melhor para se viver.
Autoria: Héric Moura (Graduando em Serviço Social pela Unifesp) e Darlene Regina (Advogada)