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"Fora Temer” como uma bandeira de ruptura sistêmica


por Gilson Amaro

Eduardo Galeano escreveu em sua brilhante obra, “As Veias Abertas da América Latina”, que “a história é um profeta com o olhar voltado para trás, contra o que foi e pelo que foi, anuncia o que será”. Esta é uma lição fundamental para nunca deixarmos de lado a perspectiva histórica.

Se a deixarmos, não entenderemos nada e seremos joguetes na disputa de poder das facções e grupos mantenedores do status quo. Em outras palavras, viveremos, lutaremos e morreremos defendendo nossos algozes.

Para entender o que se passa atualmente no Brasil precisamos da perspectiva histórica. Não reconhecer que o governo Temer é, essencialmente, a continuidade sistêmica, aprofundada e voraz do projeto executado no governo Dilma, e sobretudo durante o ciclo lulopetista na presidência da república como um todo, é um grave equívoco.



Um equívoco que interessa apenas para a manutenção de um sistema que agora possui Temer na gerência. O petismo não é de fato contra o governo Temer, mas apenas contra Temer na presidência, fazendo oposição meramente cênica e pragmática. Não é a toa que dirigentes do PT estão relutantes em usar a palavra golpe.

Ai reside uma diferença fundamental. É necessário ser contra o governo Temer pelo projeto que ele representa e implementa, por seu sentido histórico, indissociável do lulopetismo, e de tudo que há de mais retrógrado na história do Brasil, e também por aprofundar e tornar ainda mais voraz o mesmo projeto que já atacava e retirava nossos direitos sob o comando de Dilma, contra o qual já lutávamos.

Somos contra o governo Temer, não apenas por que o vice de Dilma usurpou a vaga na presidência, mas sim pela necessidade de romper com um projeto que em, linhas gerais segue o mesmo há décadas. E não deve ser confundido com nenhuma bandeira similar a um possível “Volta Dilma”.

O “Fora Temer” deve expressar a necessidade de uma ruptura sistêmica, uma rebelião contra o sistema político brasileiro e toda a lógica de exploração e corrupção que ele retroalimenta, e não deve ser o caminho para o “retorno triunfal” da gerência petista no projeto de ataque aos nossos direitos e desmonte dos serviços públicos.

Também não pode ser a legitimação da pseudodemocracia brasileira. O governo Temer é um legado do lulopetismo para o Brasil, consequência de sua lógica de governabilidade e opção em servir as classes dominantes. A presidência de Michel Temer é fruto direto dos quase 14 anos de governos petistas, com direito a manter grande parte da sua base aliada e quadros em seus ministérios.

A estratégia de poder petista, pragmática e conservadora, fortaleceu os setores mais reacionários e retrógrados da direta brasileira, entrando em simbiose com estes para manter seus privilégios. Por isso o PT e demais partidos da ex-querda fazem malabarismos para esconder fatos históricos, lançando mão de uma curiosa e confusa narrativa dos acontecimentos, que aponta em vários e contraditórios sentidos, além de confundir democracia formal com democracia real.

Por um lado, o lulopetismo se projeta retoricamente para inflamar e mobilizar ativistas e movimentos sociais, com o argumento de que o golpe palaciano é uma reação das elites a um suposto avanço no campo dos direitos e da esquerda, que teria ocorrido nos últimos catorze anos.

O irônico é que o PT perdeu a maior parte de sua base social justamente, em virtude das políticas praticadas e defendidas, por sua cúpula, durante os últimos catorze anos, em que passou se afundando na lama dos esquemas de corrupção e privilegiando banqueiros, empreiteiros, latifundiários, fundamentalistas e etc.

Por outro lado o lulopetismo deixa manifesto seu claro intuito em manter privilégios junto ao consórcio da vala comum da política e da corrupção da qual faz parte. Assim, votam no presidente da Câmara dos Deputados defendido por Michel Temer, Dilma retira a palavra golpe de carta enviada ao Senado - igual fez em missiva direcionada a ONU, Haddad diz que “golpe é uma palavra forte” e até em festa junina na casa de latifundiária - ex-ministra de Dilma, petistas vão para confraternizar e conchavar com os “golpistas”.

Ao mesmo tempo que Rui Falcão agita que não fará alianças com “apoiadores do golpe”, seu partido firma alianças com todas as legendas envolvidas nesse processo. O PT está traindo até aqueles que acreditaram honestamente na narrativa do golpe.

Na verdade esta “defesa democrática” é um malabarismo retórico que não passa de um jogo publicitário, visando inclusive legitimar a pseudodemocracia eleitoral brasileira.

Sobre este tema, o professor Plínio Arruda Sampaio Jr ressaltou em artigo recente que “supervalorizar os aspectos formais da democracia brasileira, sem a devida explicitação sobre seu conteúdo real, é uma forma capciosa de esconder os atentados perpetrados pelo PT contra a classe trabalhadora e manter o debate político hermeticamente enquadrado na lógica fechada do cretinismo parlamentar”*

Ninguém da cúpula petista defende a democracia. O petismo não rompeu com o aparato de repressão, e sim o fortaleceu. Os governos petistas não romperam com o monopólio da mídia, mas o fortaleceu com privilégios, lobby e verba publicitária enquanto não implementava de vez um sistema de comunicação pública independente.

A atual narrativa é puro marketing politico do PT, lembrando as peças da campanha milionária de Dilma em 2014, produzida por marqueteiros profissionais (que receberam caixa 2 e indicações suspeitas para trabalharem em outras campanhas) e que usou o medo como forma de unificar o eleitorado e se eleger com base em um determinado discurso, para praticar o que negava em seguida.

Também não levam a sério a luta contra os projetos de retidas de direitos trabalhistas, destruição dos serviços públicos, acelerados por Temer. Alias, o PLP 257,faz parte do pacote de ajuste fiscal iniciado pelo governo de Dilma Roussef. Por estas e outras a o lulopetismo quer negar a história.

Durante as Olimpíadas isto ficou muito evidente, buscando negar que as leis que fundamentam a absurda repressão contra manifestantes, proibindo faixas, cartazes - dando base legal às prisões - foram sancionadas e defendidas por Dilma, José Eduardo Cardozo e toda cúpula petista.

O autoritário e antissocial governo de Temer ao reprimir manifestantes estava aplicando as leis do governo Dilma. A Lei Geral da Olimpíada nº 13.284/2016 e Lei Antiterrorismo nº 13.260/2016. Sem ilusões, protestos contra as Olimpíadas e o governo seriam igualmente reprimidos por Dilma, tal qual foram massacradas as manifestações de junho de 2013 e as do movimento “Não vai ter Copa” antes e durante o mundial de futebol de 2014 pela Força Nacional de Segurança, em consorcio com PMs dos estados.

Chegando ao ponto de intelectuais apoiadores dos governos de Lula e Dilma, como Marilena Chaui, Emir Sader e Paulo Henrique Amorim, legitimarem as ações violentas contra manifestantes. Quando parte do sistema, se vê ameaçado os vários partidos da “ordem” se juntam para garantir o funcionamento das politicas excludentes, isto se torna muito visível nos megaeventos.

É fundamental saber que para além da disputa narrativa em torno do impeachment, os dois “lados” estão do mesmo lado, tendo os mesmos objetivos e métodos, jogam uma cortina de fumaça sobre as reais contradições da sociedade brasileira, escondem que tem o mesmo projeto e transformam o debate politico num mero jogo despolitizado, baseado na falsa polarização, que favorece a mistificação lulopetista da história e direita tradicional. Assim seguem atacando conjuntamente quem questionar e se levantar com radicalidade política contra o sistema.

Negar a perspectiva histórica dos fenômenos sociais significa dar espaço para as forças conservadoras, é reoxigenar quem nos oprime e ataca. Precisamos radicalizar as lutas contra o governo Temer, do mesmo modo que devemos combater o lulopetismo e todas práticas e programas que caracterizam este ciclo moribundo da esquerda brasileira.

Vivemos a falência da "Nova Republica”, e é necessário portanto construir um forte movimento extra parlamentar e radical na sociedade para reconstruir as bases da democracia e para evitar o risco de que as forças sistêmicas, representadas pelos polos que protagonizam a atual falsa polarização na narrativa do golpe, se reoxigenem e se fortaleçam.

Gilson Amaro é militante do Coletivo Primeiro de Maio educador popular de Filosofia e colaborador do Jornal Santista.

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