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Lei de drogas e encarceramento: a culpa é de quem?

Ou por que a Lei de Drogas de 2006 NÃO é a responsável pelo aumento dos aprisionamentos no país

* por Marcos de Paula

Correlação causal não é relação de causa e efeito

Muitas vezes, uma coisa parece ser causa de outra, quando na verdade não é. Esse é um tipo de engano que podemos cometer quando duas coisas estão de fato relacionadas entre si, parecendo haver entre elas uma relação de causalidade, embora entre elas haja apenas uma correlação. Por exemplo: conquanto os estudos não sejam conclusivos, parece haver uma correlação entre fumar maconha e contrair câncer (de boca, garganta ou pulmão). Mas o que de certo já se sabe é que a maconha está muito menos relacionada ao câncer do que o tabaco. O que ocorre é que a combustão da celulose usada no cigarro de maconha é carcinogênica – mas não a própria canábis. Ao contrário, vários estudos mostram que a canábis é antitumoral, ou seja, pode prevenir contra o cânceri. Então, fumar maconha pode estar relacionado a certos casos de câncer, mas ela não é a causa do câncer: “fumar maconha” pode vir junto com “câncer”, sem que a própria maconha seja sua causa. Uma correlação não é uma relação causal: cum hoc ergo propter hoc (“com isto, logo por causa disto”) e post hoc ergo propter hoc (“depois disto, logo causado por isso”) não são proposições intrinsecamente verdadeiras.


A brecha subjetiva e os números assustadores

Um certo senso comum midiático, militante e mesmo acadêmico costuma atribuir à Lei de Drogas de 2006 boa parte da culpa pelo problema do híper encarceramento atual no Brasil. Costuma-se dizer que em grande medida o tamanho de nossa atual população carcerária se deve aos efeitos dessa Lei, que entrou em vigor ao final do primeiro mandato do governo do Partido dos Trabalhadores (PT). A mudança na lei seria a causa; o aumento no número de presos seria um de seus efeitos, sobretudo porque há mais de dez anos os presos por tráfico de drogas correspondem a um terço ou mais (no caso das mulheres, mais de 60%!) do total de encarcerados e encarceradas.

Para dar apenas um pequeno exemplo dentre muitos outros, num artigo intitulado “Brasil, terceira maior população carcerária, aprisiona cada vez mais”, reproduzido na página do Instituto Humanitas da Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), mas inicialmente publicado pelo Deutsche Welle (DW) em 2018, deparamo-nos com a afirmação de que uma das medidas para diminuir a massa carcerária seria uma revisão da Lei de Drogas de 2006, que, segundo o artigo, seria “uma das principais responsáveis pela superlotação das prisões brasileiras pelo fato de endurecer as penas para pequenos traficantes que nem sempre representam perigo à sociedade”. À afirmação segue-se a fala de um professor de Direitos Humanos da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Michael Mohallem:

A mudança na Lei de Drogas é particularmente muito importante, porque um terço de todos os presos está nas cadeias por causa do tráfico de drogas. Quanto às mulheres, particularmente, esse percentual passa de 60%, e muitas delas estão presas atendendo uma imposição ou pedido para levar drogas para o companheiro no presídio.

As estatísticas mostram, de fato, que a população carcerária aumentou muito desde 2005 – passou de cerca de 362 mil a 727 mil presos, entre 2005 a 2016, ao mesmo tempo em que a proporção de presos por tráfico de drogas passou de 9%, em 2005, para mais de 30%. Contudo, quando se afirma que a alteração na legislação é a causa ou a principal causa do aumento do número de presos, implicitamente está-se afirmando que a mera mudança na legislação teria como efeito o fenômeno da superlotação das cadeias. Em geral se afirma que a Lei de Drogas de 2006 deixa uma brecha à subjetividade interpretativa de policiais, delegados, promotores e juízes, no momento de qualificar, indiciar e condenar alguém como usuário ou traficante. Como a lei não determina a quantidade exata de drogas portadas, para distinguir o usuário do traficante, ela deixaria uma brecha por onde entraria a subjetividade interpretativa dos agentes do sistema de justiça. Seria por essa brecha subjetiva que entrariam as detenções e condenações por tráfico de drogas, e como elas respondem por cerca de 30% do total de presos (60% se considerarmos apenas as mulheres), a própria Lei de Drogas em vigor seria a maior responsável pelo encarceramento em massa no Brasil.

Essa interpretação, no entanto, simplifica o problema. Não se pode negar que a brecha subjetiva existe – ela está lá, invisível no corpo da Lei, no que ela silencia, no seu não dito, por não determinar claramente o que é usuário e o que é traficante. Mas a mera existência de uma porta aberta não implica que se deva entrar por ela. O fenômeno é mais complexo. A mera existência da lei e suas brechas não é garantia de que, para todos os efeitos, será cumprida – ou aplicada desta ou daquela maneira. Um bom exemplo disso é o que acontece no próprio campo das execuções penais no país. Existe todo um arcabouço jurídico, tanto nacional quanto internacional, que as execuções penais deveriam atender, para garantir os direitos humanos fundamentais dos presos e sua dignidade humana.ii E no entanto, como sabemos, isso simplesmente não ocorre: no país, as condições nas prisões são em geral desumanas e degradantes.

O crescimento vertiginoso da população carcerária no Brasil nas últimas décadas é um fato. Mas ele não começou em agosto de 2006, quando a “nova Lei de drogas” foi publicada. Dados oficiais do próprio governo mostram que entre 2002 e 2006, essa população passou de 240 mil para 401 mil presos (em números arredondados) – um aumento portanto de quase 68% num curto período de 4 anos. Na verdade, nos quatro anos que se seguiram à Lei de 2006 houve uma diminuição no ritmo de crescimento dessa população, pois os dados oficiais também mostram que entre 2006 e 2010, ela passou de 401 mil para 496 mil – um crescimento de 23%, num mesmo intervalo de tempo, isto é, quase três vezes menor. Comparem-se os gráficos abaixo:


               Esses dados, contudo, referem-se à população carcerária de um modo geral. Valeriam para os casos relacionados especificamente ao tráfico de drogas? Certamente, o ritmo de crescimento nessa categoria penal foi maior do que as outras, pois, como vimos, os encarcerados por tráfico de drogas correspondem hoje a cerca de 30% do total de presidiários, quando eram 9% há pouco menos de 20 anos. Além disso, ainda que as estatísticas possam mostrar taxas e ritmos de crescimento menores do que antes da Lei, os números absolutos são assustadores, fazendo do Brasil um dos países com as maiores populações carcerárias do planeta. Contudo, mais uma vez, é preciso pensar qual é a causa real desse aumento. E defendemos, aqui, que não é a própria Lei de 2006 a culpada.

              Mas se não é a própria brecha subjetiva da Lei de Drogas de 2006, o que então explica esse fenômeno de encarceramento em massa, de um modo geral, e o aumento do encarceramento por tráfico de drogas, particularmente?

Seria necessário um estudo sociológico aprofundado para dar conta de todos os fatores envolvidos no problema, mas talvez possamos encontrar uma explicação na conjunção e no entrecruzamento de três fatores correlatos: 1) o ambiente de guerra às drogas; 2) o componente ideológico das polícias; e 3) o racismo estrutural.

O ambiente de guerra às drogas.

Acirramento da guerra às drogas – um processo iniciado no Brasil na segunda metade dos anos 1990, em consonância com as posturas internacionais sancionadas pela ONU. É nos anos 1990 que se intensifica na América Latina a guerra às drogas declarada pelos EUA ainda no início dos anos 1970. Sabemos que as políticas de encarceramento são inseparáveis da política de guerra às drogas.

No Brasil, e particularmente em São Paulo, que tem a maior população carcerária do país, o ano de 2006 marca talvez o auge da guerra às drogas. Como sabemos, em maio daquele ano, mais de 450 pessoas, quase todos jovens, negros e habitantes dos bairros periféricos da cidade, foram mortas em menos de duas semanas, executadas pela PM de São Paulo, como retaliação às investidas do PCC – citar aqui “Do Luto à Luta”, livro que relata toda essa história. Trata-se de um genocídio policial resultante da guerra entre forças policiais e organizações criminosas como PCC etc... É verdade que o episódio aconteceu em São Paulo, mas teve repercussão nacional e certamente teve efeitos em outras partes do país em termos de acirramento da guerra às drogas e seu correlato, o encarceramento de pessoas envolvidas direta ou indiretamente ao narcotráfico, sobretudo pequenos traficantes e usuários tipificados como tais.

A hipótese é que, em meio a essa guerra, as polícias (Militar, Civil e Federal) vão, a partir de 2006, utilizar a brecha da Lei, não para prender menos, mas para prender mais. Essa última ideia é importante e vamos retomá-la na conclusão deste artigo.

O componente ideológico das polícias

Quando observamos os gráficos estatísticos do aprisionamento no Brasil a partir de 2002, observamos considerável aumento das prisões no ano de 2003 (lembremos: antes da “nova Lei de drogas”), algo em torno de 29%, uma taxa muito maior do que em qualquer outro momento da série estatística até 2016:


Fonte: Ministério da Justiça. A partir de 2005, dados do Infopen. “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Junho de 2016 (Atualização – 2017)”

Para além do contexto de guerra às drogas, o que terá acontecido?

A hipótese aqui é mais difícil de demonstrar. Ela seria a seguinte: o ano de 2003 marca a chegada ao poder de um governo de esquerda, o PT. Atualmente sabemos o quanto as polícias do país, sobretudo as militares, comportam um fortíssimo traço ideológico conservador, autoritário e muitas vezes de caráter fascista. Isso hoje é mais claro do que no início dos anos 2000. A pergunta é: terá esse componente contribuído para o acirramento de uma postura ainda mais autoritária e, consequentemente, encarceradora das polícias, mas também de boa parte de outros setores do sistema de justiça? Essa postura autoritária – podemos chama-la assim – seria um posicionamento contra os ideais de esquerda em termos de segurança pública: defesa dos direitos humanos, o não-punitivismo, desencarceramento, horizonte de legalização das drogas. São elementos próprios de uma postura das esquerdas, ainda que não necessariamente da esquerda ocupante do poder a partir de 1º. de janeiro de 2003.

Aqui seria preciso lembrar que esse componente ideológico das polícias e de boa parte do sistema de justiça, em consonância com o viés punitivista da grande maioria da população brasileira, é corroborado, legitimado e incentivado pelos programas televisivos policiais, que muitas vezes trabalham em contato direto com a atuação policial no dia a dia. Datena: “Bandido bom é bandido morto”, e coisas do tipo... Mas matar é um ato extremo – antes disso, prender é uma opção mais viável em termos de atuação policial.

Toda essa hipótese é difícil provar, mas não nos parece implausível. Se, em todo caso, ela estiver correta, talvez se possa dizer que precisamente essa postura autoritária vai aproveitar a brecha subjetiva da Lei de 2006 para realizar o inverso do que ela almejava: prender menos, e não mais.

O racismo estrutural

Outro componente que poderia explicar porque a Lei de 2006 “pegou”, e não para prender menos, mas mais, é o que Silvio Almeida bem analisou como sendo o racismo estrutural. A hipótese aqui é que a brecha subjetiva da Lei constitui, dentre muitas, mais uma possibilidade de exercício de práticas racistas. A ideia é que a brecha subjetiva se constitui numa possibilidade objetiva, institucional, para que policiais, delegados, promotores, juízes etc. possam exercer um racismo cuja presença na sociedade brasileira é inegável e cada vez mais evidente.

Para concluir...

Em sua Teoria Geral do Direito e Marxismo, o grande jurista revolucionário Evguiéni Pachukanis argumenta contra os neokantianos (sobretudo Kelsin), afirma que a norma e a lei (direito positivo) não trazem, em si mesmas, a força de sua própria aplicação, vigência e êxito. Tudo depende a que forma social e política a lei corresponde enquanto forma jurídica.

Aquilo que foi chamado de brecha subjetiva da Lei de Drogas de 2006 não é em si mesmo a causa do aumento do encarceramento em massa no país, nos últimos quase 18 anos. Enquanto tal, a brecha interpretativa funciona como uma porta tanto de entrada como de saída. Por conta de fenômenos exteriores à própria Lei, ela tem servido para encarcerar cada vez mais, no campo da criminalidade das drogas; mas, não fossem esses fenômenos, a mesma brecha poderia ter sido utilizada para encarcerar menos. Afinal, se a lei deixa essa brecha interpretativa, ela permite, em si mesma, que se possa qualificar como usuário alguém portanto 20 cigarros de maconha, por exemplo, ou mesmo mais – por que não? E no entanto sabemos que não é assim, que é quase sempre é o contrário: há casos de pessoas presas por tráfico que foram pegas com apenas 3 cigarros de maconha...

A Lei de 2006 está longe de ser a única ou mesmo a principal culpada pela gigantesca população carcerária que temos hoje no país. Ao contrário do que costuma acontecer com muitas leis importantes no Brasil, a Lei de 2006 “pegou”, funciona, vige, é aplicada – mas sempre em favor daqueles que desejam e praticam o punitivismo, a guerra às drogas e o racismo.

É por tudo isso que, nesse momento, está em discussão, no STF, justamente a descriminalização de usuários de drogas, e tudo aponta para a definição de quantidades exatas de substâncias psicoativas que poderão ser portadas por usuários sem que isso configure um crime. O que está em jogo, no STF, no momento, é uma luta pela objetividade da Lei contra as brechas subjetivas por onde entram os conservadorismos e o racismo. No campo do direito individual ao uso de substâncias psicoativas, e no que concerne ao fim da guerra às drogas, não resolverá todos os nossos problemas, é verdade, mas já é um grande passo na direção do desencarceramento em massa.

iEm nível nacional, a Constituição de 1988, Art. 5º. e seus Incisos, e a própria Lei de Execução Penal, em seu Art. 41, Incisos de I a XV;no campo internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, para citar os principais exemplos.

 Marcos de Paula é professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo - Departamento de Saúde, Educação e Sociedade e militante antiproibicionista


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