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A lava jato e exaustão da Nova República




por Plínio de Arruda Sampaio Jr*

A grave crise política que polariza a luta de classes expressa a exaustão da democracia de cooptação, cristalizada na transição da ditadura militar para o Estado de direito. Enquanto o crescimento da economia alimentou a expectativa de melhoria social, as terríveis contradições de uma sociedade cindida entre ricos e pobres foram ignoradas e empurradas para a frente. Como já ocorrera inúmeras vezes na história do Brasil, a esperança de dias melhores funcionava como um apaziguador da luta de classes. Entretanto, assim que a expansão econômica cessou, vieram à tona os gigantescos antagonismos de uma sociedade subdesenvolvida e dependente que não resolveu nenhum de seus problemas históricos.

As contradições latentes na acanhada democracia da Nova República tornaram-se antagonismos abertos nas Jornadas de Junho de 2013. Frustrados com o mesquinho “melhorismo” dos governos petistas, os jovens que tomaram as ruas cobraram dos governantes as promessas vazias da Constituição de 1988. Posta contra a parede por um estado de mal-estar social que corria o risco de fugir do controle e premida pela necessidade de dar uma resposta à crise econômica, a burguesia assumiu plenamente e sem rodeios seu caráter autocrático e antissocial e partiu para a ofensiva contra os trabalhadores.

Para as classes subalternas, a deficiência da Nova República manifesta-se no caráter impermeável do Estado brasileiro às demandas democratizantes da população. A convicção de que “todos os políticos são iguais” decorre da constatação prática de que, no final das contas, os imperativos do capital sempre acabam prevalecendo. Para as classes dominantes, é o oposto. A crise política reflete a impossibilidade de conciliar as exigências dos negócios – “ordem e progresso” – com o respeito às regras do jogo democrático. Os de cima enxergam as aspirações da classe trabalhadora como uma ameaça a seus privilégios e assumem sem disfarce seu caráter despótico. Os “remédios amargos” para tirar o país da crise exigem o atropelo de direitos adquiridos e a tutela dos trabalhadores. O interesse popular é assumido abertamente como um elemento espúrio que deve ser desconsiderado pelos homens de Estado. A democracia não pode colocar em risco a subordinação da razão de Estado à razão dos grandes negócios que impulsionam a acumulação de capital.

Assim como a crise da economia cafeeira em 1929 selou a sorte da República Velha, a crise terminal do processo de industrialização por substituição de importações, cuja pá de cal foi o ciclo neodesenvolvimentista de Lula e Dilma, destruiu irremediavelmente a Nova República.

A resposta da burguesia à crise da Nova República não pode ser dissociada da estratégia de reprimarização da economia brasileira como resposta à crise terminal do processo de industrialização. A guerra aberta contra os trabalhadores para impor condições ainda mais draconianas de exploração da força de trabalho requer uma compressão brutal do espaço de manifestação da vontade política das classes subalternas. Assim como os direitos trabalhistas não cabem nos cálculos de rentabilidade dos empresários e a política social não cabe no regime de austeridade imposto pelas finanças, o padrão de dominação baseado na democracia de cooptação não cabe nos planos de ajuste econômico, que coloca no horizonte um padrão de acumulação característico de economias de tipo colonial, baseado na produção de commodities para o mercado internacional.

A solução reacionária para a crise econômica é simplesmente impossível sem a anomia política da classe trabalhadora. Para evitar qualquer possibilidade de uma solução que contemple os interesses do trabalho, submete-se a opinião pública à lavagem cerebral de que os remédios amargos que compõem as “reformas” liberais constituem o único meio de tirar o país do atoleiro. Como o protesto social poderia furar o cerco da ignorância difundida pela grande mídia e dialogar diretamente com as massas, torna-se obrigatório criminalizar a luta social, estigmatizar a crítica e cercear a atuação dos partidos de esquerda.

Além de agir diretamente sobre a consciência da classe trabalhadora, o capital investe sistematicamente contra os resquícios democráticos existentes nos interstícios de uma estrutura de poder que, na realidade, há tempos já funciona como um verdadeiro Estado de Exceção. Na concepção de uma burguesia que não superou o espírito arbitrário e autoritário do senhor de escravo, os direitos adquiridos dos trabalhadores não podem se sobrepor aos imperativos dos negócios. Uma vez que os ataques aos direitos trabalhistas e às políticas sociais jamais passariam pelo crivo do voto popular, torna-se necessário desmoralizar as instituições que expressam – mesmo que muito precariamente – a vontade do cidadão.

O ataque à Nova República assumiu a forma de uma cruzada moralista contra a corrupção. As investigações judiciais comprovaram o que todos sabiam. A corrupção é um elemento estrutural do padrão de acumulação e dominação do capitalismo brasileiro. As delações dos altos executivos do capital são didáticas. O capital é o elo dominante da relação criminosa. Os partidos são comprados pelos empresários. Os políticos funcionam como despachantes de interesses privados nos aparelhos de Estado.

A radiografia das relações promíscuas da política com o capital feita pelo poder judiciário e sua espetacularização pelos grandes meios de comunicação trucidaram o sistema político e todas as suas instituições. Paradoxalmente, as causas profundas da corrupção – a absoluta preponderância dos imperativos dos negócios na vida nacional – em nenhum momento foram colocadas em questão. Muito pelo contrário.

Os paladinos da moralização – Moro, Fachin – não vão à raiz do problema. A corrupção é reduzida a uma questão moral de foro individual e fica circunscrita a casos específicos. As investigações são seletivas. O sistema financeiro é blindado de qualquer investigação, mesmo sendo evidente que é impossível a lavagem de magnitudes amazônicas de dinheiro sujo sem sua cumplicidade. A ramificação da rede criminosa no sistema judiciário e na grande mídia é negligenciada. O capital estrangeiro não é sequer investigado. Os acordos de leniência deixam as empresas livres para continuar saqueando os cofres públicos e pilhando o país. No final, sob a aparência de uma faxina geral, permanece tudo como dantes. A engrenagem do roubo não é abalada. As relações promíscuas entre o grande capital e o Estado permanecem incólumes. A operação do judiciário apenas prepara o caminho para uma “modernização” dos esquemas de intermediação ilícita dos interesses do capital nos aparelhos de Estado, adaptando-os às exigências do novo padrão de acumulação.

Os limites pouco republicanos da investida contra a corrupção revelam que o verdadeiro objetivo do “Partido do Judiciário” não é moralizar a vida pública, mas aumentar ainda mais a submissão do Estado aos interesses dos grandes negócios. Ao se explicitar que por trás de cada representante do povo existe invariavelmente o patrocínio de uma grande empresa, avilta-se a relação de confiança entre os eleitores e seus representantes. Desmoralizados perante seus constituintes, os políticos perdem toda autonomia para mediar o conflito entre o interesse privado e o interesse público. Acuados pela ofensiva avassaladora da campanha midiática contra a política, abraçam, sem qualquer contraponto, a agenda de desmonte das conquistas trabalhistas e democráticas que conferiam um patamar mínimo de civilidade à sociedade brasileira.

Ao assumir sem disfarce o conteúdo de classe do Estado, a burguesia afirma sua ditadura implacável sobre a sociedade. A banalização do debate público, a criminalização dos movimentos sociais e a destruição do sistema político esvaziam a democracia de qualquer conteúdo popular. Hermeticamente fechado aos de baixo, o circuito político apresenta-se como o que é: um condomínio exclusivo da plutocracia destituído de qualquer verniz democrático. A soberania popular fica ainda mais comprimida, deixando a sociedade a um fio da autocracia explícita.

A falta de uma alternativa imediata para substituir as estruturas carcomidas da Nova República não permite vislumbrar um rápido desfecho para a crise política. Mesmo que historicamente condenada, o mais provável é que sua agonia seja lenta, arrastando-se por tempo indefinido. Afinal, não se deve subestimar a capacidade de resistência da coalizão que une pemedebistas, tucanos e petistas em torno do interesse comum em viabilizar a anistia da corrupção e evitar instabilidades políticas que possam acirrar a luta de classes, nem tampouco seu compromisso estratégico com a ordem global e, em consequência, sua docilidade diante das imposições do ajuste neoliberal. O estado de crise permanente que caracteriza a moribunda Nova República não deixa de ser, assim, altamente funcional ao capital.

Sem coragem, criatividade e ousadia para proporem uma solução alternativa para o grave impasse histórico que ameaça a sociedade brasileira, as classes subalternas ficam condenadas à miséria do possível. Na economia, as alternativas polarizam-se entre o ajuste sem meta e o ajuste com meta dobrada, que dividem os partidos que compõem a esquerda e a direita da ordem. Na política, a opção fica restrita à hipocrisia do “Partido do Judiciário”, que preserva a causa do problema – o controle do Estado pelo capital -, e o “Estancar a Sangria”, que perpetua o mar de lama da corrupção.

Ameaçada pela virulência da ofensiva do capital contra o trabalho, a classe trabalhadora está obrigada a buscar novos caminhos para o enfrentamento da grave crise civilizatória que degrada sua existência. O primeiro desafio é superar o bloqueio mental que alimenta o senso comum de que nenhuma política econômica é viável se não contar com a aprovação do grande capital.

A tarefa imediata é política: derrubar o governo usurpador de Temer e dar uma solução democrática, de baixo para cima, para a crise terminal da Nova República. “Diretas Já” e “Fora Todos”, de baixo para cima, como ponto de partida, e “Revolução”, como ponto de chegada, devem ser as referências fundamentais que norteiem a luta política das forças comprometidas com a construção de uma agenda de combate à barbárie.

Sem uma substancial ampliação da democracia, é impossível imaginar uma mudança radical nas prioridades que orientam a política econômica. O essencial é inverter o sentido das respostas que vêm sendo dadas à crise econômica. Ao invés de dar primazia aos negócios do capital internacional e à modernização dos padrões de consumo de uma exígua parcela da população, a política econômica deve colocar em primeiro plano as necessidades fundamentais do conjunto dos trabalhadores – emprego digno para todos, reforma urbana, reforma agrária, respeito ao meio ambiente, proteção das nações indígenas, etc. “Fora Ajuste”, “Direitos Já”, “Trabalho”, “Teto”, “Terra” e “Transporte” devem ser consignas de uma política econômica comprometida com os interesses estratégicos dos trabalhadores brasileiros.

Submetida a um processo de reversão neocolonial, a sociedade brasileira encontra-se numa encruzilhada decisiva. Sufocada pela ditadura militar em 1964, a revolução brasileira volta à ordem do dia como único meio de superar os terríveis antagonismos de uma sociedade marcada pela segregação social e pela dependência externa. A sociedade brasileira está polarizada entre projetos irreconciliáveis – a reciclagem da contrarrevolução burguesa cristalizada em 1964, que, hoje, tem a cara de uma regressão ao patamar civilizatório do século XIX, e a revolução dos pobres e oprimidos latente nas placas tectônicas que mobilizam a história do Brasil. Posta em perspectiva de longa duração, a escolha real é entre ecossocialismo ou barbárie.

*Plínio de Arruda Sampaio Jr., é colunista do Jornal Santista, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – IE/UNICAMP

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