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O carteiro, o poeta e o muro que nos separa dos nossos sonhos


* Escrito por Walter Parreira e Héric Moura

O filme "O carteiro e o Poeta" (Il Postino), dirigido por Michael Radford em 1994 e com roteiro de Anna Pavignano, Furio Scarpelli e Giacomo Scarpelli, se passa em uma ilha italiana e retrata a amizade entre o renomado poeta Pablo Neruda, um exilado político comunista, e Mario Ruoppolo, um carteiro humilde e semianalfabeto. Ao longo dos 108 minutos do filme, musicalmente acompanhado por uma trilha sonora vencedora do Oscar em 1996, testemunhamos a entrega total de Mario a essa amizade e as mudanças que ocorrem em sua vida.

Mario, é filho de pescador, mas não se identifica com a pesca e busca uma nova oportunidade de emprego, qualquer uma. Ao tornar-se carteiro em uma ilha que quase ninguém lê, recebe a designação para entregar correspondências ao renomado poeta Pablo Neruda, recém-exilado na ilha devido à perseguição política pelo governo fascista de Pinochet, a vida de Mario começa a se transformar. Fascinado pelo mundo das palavras e encantado pela reputação de Neruda como conquistador de corações femininos através de seus poemas, Mario mergulha em um universo literário que o envolve.

Nesse encontro entre o poeta e o carteiro que o filme revela a jornada de Mario em sua amizade com Neruda. O poeta o envolve em seu mundo, abrindo os olhos de Mario para as belezas do local onde vive, nessa amizade, o poeta é trazido de volta à humanidade, deixando para trás a natureza fria e nostálgica do exílio. A vida limitada e sem perspectivas de Mario começa a se transformar, enquanto ele descobre uma nova paixão pela poesia e se conecta com Neruda de uma maneira que vai além das palavras.

Dom Pablo e Mario Ruoppolo


As vidas de Mário e Neruda vão se entrelaçando através das entregas regulares de cartas que Mario fazia ao poeta. Enquanto folheia os poemas de Neruda, o carteiro encontra versos que faziam um estranho sentido e acabavam ressoando em sua própria vida, como: "...Acontece que vou ao cinema e ao alfaiate. Sentindo-me caído. Dormente como um cisne perdido...". Nesse contexto que o poeta aproveita para explicar a Mário o conceito de metáforas. Feliz com essa descoberta, o carteiro constata que "o mundo está cheio de coisas que são metáforas de outras".

À medida que a amizade entre eles se fortalece, submersos na discussão sobre metáforas, os diálogos entre Mário e Neruda se tornam por vezes um bocado poéticos também. O uso da metáfora aqui vai muito além de uma mera figura de linguagem, pois o poeta a utiliza como uma ferramenta educativa para transmitir ideias complexas ao carteiro por meio de outras coisas. Surpreendentemente, a recíproca também é verdadeira, e em pouco tempo, Mario também surpreende Neruda ao ensinar-lhe outras coisas através de sua próprias metáforas. A proximidade entre o poeta e o carteiro se intensifica, como evidenciado pela cena em que os dois estão sentados juntos na praia. Nesse momento, o poeta recita um poema:

" Aqui nesta ilha, o mar. Tanto mar. Ele transborda de tempos a tempos. Diz que sim, diz que não, então não. No azul, na espuma, num galope diz que não, então não. Não pode estar tranquilo. “Chamo-te mar”, repete batendo na pedra sem convencê-la. Então, com sete línguas verdes de sete tigres verdes, de sete cães verdes, de sete mares verdes ele acaricia, beija, molha e bate no peito repetindo seu nome.

"Dom Pablo: Então. Que te parece?

Mário: É Estranho.

Dom Pablo: Como assim, estranho? És um crítico severo.

Mário: Não, não o seu poema. Estranho… estranho… É como me senti enquanto estava a recitar.

Dom Pablo: E como se sentiu?

Mário: Não sei. As palavras iam para frente e para trás.

Dom Pablo: Como o mar?

Mário: Exatamente, como o mar.

Dom Pablo: Isso é ritmo.

Mário: Na verdade, senti-me mareado.

Dom Pablo: Mareado.

Mário: Não sei explicar. Senti-me como um barco balançando em volta de tuas palavras.

Dom Pablo: Como um barco balançando em volta das minhas palavras?

Dom Pablo: Sabes o que acabastes de fazer, Mário?

Mário: o quê?

Dom Pablo: Uma metáfora."

A conexão íntima entre o poeta e o carteiro se manifesta não apenas nas palavras, mas também nas trocas de visões de mundo e conversas sobre poesia. Um dos momentos impactantes do filme ocorre quando Mário expressa sua identificação com o eu lírico de uma poesia escrita por Neruda, revelando que também está "cansado de ser homem". Nesse instante, ele transmite sua angústia, tristeza e exaustão diante da dura realidade que enfrenta, assim como a ausência de um propósito para sua existência. Essa afirmação de "cansar-se de ser humano" surge como uma constatação de que, dentro das circunstâncias impostas pela organização social do mundo, somos incapazes de alcançar plenamente o nosso potencial enquanto seres humanos. É a sensação de que há um muro nos separa de nossas aspirações mais profundas. 

Essa reflexão revela a profunda inquietação que Mário sente em relação à sua condição e à busca por significado em meio às limitações impostas pela sociedade e pelas circunstâncias individuais. Esse muro, representado pelas estruturas da produção, consumo e organização social, vai além penas da miséria material propriamente dita. O obstáculo se materializa nas diversas expressões da questão social e nas contradições que observamos ao nosso redor: na violência, nas famílias desfeitas, nas relações fracassadas, nos suicídios, no alcoolismo, no abuso de drogas, na depressão, no desespero de pessoas que buscam parecer felizes nas redes sociais, na maneira como as pessoas se enxergam como objetos, nas pessoas que são ignoradas em nosso dia a dia, nas conversas vazias e nas amizades superficiais.

Não é só o sentimento de tristeza que permeia a relação entre o carteiro e o poeta, pois a influência de Neruda expande o mundo de Mário, à medida que este se apropria de novos conceitos e seu pensamento se sofistica. O carteiro passa a questionar as injustiças presentes em sua realidade, tornando-se consciente da exploração que seu povo sofre. Movido pela indignação, ele enfrenta os detentores do poder em sua região e busca uma transformação social ao se engajar com os comunistas.

O vínculo de amizade estabelecido entre carteiro e poeta transformou ambos em sua humanidade, conectando-os profundamente à simplicidade e generosidade da vida e luta. Essa luta é compartilhada tanto por Mário quanto por Dom Pablo quanto por nós hoje, a luta por condições para construir uma nova sociabilidade. 

Hoje, esse desafio nos é apresentado, instigando-nos a avançar em direção a uma sociedade justa, livre das opressões e explorações que nos foram impostas. Assim como eles, somos convocados a enfrentar esse desafio coletivo e a contribuir para a construção de um futuro igualitário e emancipado.


 * Walter Parreira é jornalista e graduando em Serviço Social na UNIFESP

 * Héric Moura é graduando em Serviço Social na UNIFESP



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